"Características da democracia
O desenvolvimento da democracia nos regimes representativos segue em duas direções: a) o alargamento gradual do voto: inicialmente restrito a uns poucos, de acordo com critérios como renda, cultura e sexo, estende-se a todos sem distinções de qualquer espécie (sufrágio universal).
b) a multiplicação dos órgãos representativos: de uma câmara legislativa única surgem duas nacionais (das quais são exemplos o Senado e a Câmara dos Deputados); depois, criam-se órgãos locais (como as assembleias estaduais e as câmaras municipais), até se chegar, na passagem da monarquia à república, à eleição do chefe de Estado.
Na teoria política contemporânea, define-se democracia como um regime político que apresenta,
necessariamente, as seguintes características:
1. O Parlamento ou Congresso, órgão legislativo máximo da nação, deve ser eleito, direta ou indiretamente, pelo povo.
2. Outras instituições, como os governos locais e a chefia do Estado (no caso das repúblicas), também devem ser conduzidas por dirigentes eleitos.
3. Todos os cidadãos maiores, sem distinção de raça, sexo, religião ou renda, devem ser eleitores.
4. Todos os eleitores devem ter voto igual.
5. Todos os eleitores devem votar livremente, tendo acesso ao debate entre partidos, para que possa formar sua opinião.
6. O voto deve ser livre e o eleitor deve ter condições de escolher entre reais alternativas, ou seja, não é democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada.
7. Tanto para as eleições dos representantes legislativos como dos órgãos de poder supremo, vale o princípio da maioria numérica, aceitos os vários critérios estabelecidos pelos sistemas eleitorais, com possibilidade de serem mudados.
8. Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria.
Do ponto de vista dos partidos políticos, podemos ainda classificar os regimes democráticos de acordo com a seguinte tipologia:
a) No que tange ao número de partidos, existem sistemas bipartidários e multipartidários.
Normalmente o sistema unipartidário não é considerado democrático.
b) No que se refere às relações interpartidárias, há regimes bipolares, em que os vários partidos
se agrupam em governistas ou oposicionistas, e multipolares, em que os partidos se postam ao centro, à direita ou à esquerda do governo. Em regimes democráticos, geralmente governos conservadores enfrentam a oposição dos progressistas e governos progressistas enfrentam a oposição dos conservadores.
Os teóricos fazem ainda uma distinção entre democracia formal e democracia substancial. Simplificadamente, pode-se dizer que a democracia formal é um governo “do povo”, enquanto a democracia substancial é “para o povo”. Na democracia formal uma minoria detentora do poder econômico é favorecida; já uma ditadura política, em períodos revolucionários nos quais a democracia formal é impossível, pode favorecer a maioria dos cidadãos.
Em relação ao significado formal da democracia, pode-se falar ainda em liberalismo democrático e socialismo democrático, pois as duas doutrinas levam em conta a democracia, mesmo não entendendo por ela literalmente a mesma coisa. Percebe-se, portanto, que a democracia é compatível com doutrinas e governos de posturas ideológicas distintas.
Mas num ponto os defensores de ambos os grupos doutrinários estão de acordo: a democracia nunca se concretizou; é uma utopia que deveria ser tanto formal (do povo) como também substancial (para o povo).
Características das ditaduras
Basicamente são três as características fundamentais sempre presentes numa ditadura: 1. a concentração do poder e seu caráter ilimitado;2. a entrada de amplos estratos populares na política;
3. a precariedade das regras de sucessão ao poder.
A concentração do poder pode dar-se no nível pessoal (quando exercido por uma pessoa) ou oligárquico (quando exercido por um grupo ou partido).
O governo não é limitado pela lei: coloca-se acima dela e faz de sua vontade a lei. Isso mesmo havendo salvaguardas jurídicas, pois estas podem ser mudadas ou ignoradas, o que torna a conduta do ditador imprevisível. Quanto às condições sociopolíticas da ditadura, seu ambiente típico é a sociedade em profundas transformações econômicas, sociais e culturais.
As ditaduras contemporâneas ocorrem tanto em sociedades com alto grau de modernização econômica e mobilização popular, por deterioração da democracia, como em sociedades com baixo grau de modernização e mobilização. Neste último caso, a ditadura pode ser implantada para manter uma ordem tradicional ou para quebrá-la e preparar a democracia liberal, quando uma pequena elite procura impor, de cima para baixo, a industrialização e o desenvolvimento. Insere-se aí, por exemplo, a ditadura varguista no Brasil.
Em relação aos problemas ligados à legitimação do poder e às regras de sucessão, surge uma contradição fundamental: a ditadura concentra o poder e impõe a autoridade de cima para baixo, mas firma-se no princípio da soberania popular. Apresenta-se como expressão dos interesses e necessidades do povo, mas não tem a legitimidade do voto.
Daí os vários artifícios, como os plebiscitos nacionais e as concentrações de massas, promovidos pelo governo. O povo é forçado a apoiar o ditador para que este possa proclamar que está apoiado na vontade popular. Eis aí o ponto fraco das ditaduras: elas não podem, enquanto ditaduras, eleger o ditador pelo voto efetivamente livre, mas também não podem herdar ou delegar o poder, porque defendem o princípio republicano da soberania popular."
Caderno de Sociologia 3 - Sistema Anglo de Ensino
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2ª ATIVIDADE - TEORIA DO ESTADO
Idel seria aleitura do Capítulo Filosofia Política do livro convite à Filosofia de Marilena Chauí - pag 509 a 526 - http://www.uff.br/cienciainformacao/Disciplinas/CHAUIconvitea_filo.pdf
Sugere-se também a leitura do segunte resumo
I - Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) teorizou sobre o Estado moderno de sua época, afastando-se dos preceitos da moral e da religião. Conscientemente dava início à ciência política como disciplina autônoma. Sua opção pela linha experimental, na trilha de Leonardo da Vinci, levou-o a procurar entender a realidade política como ela é, e não como gostariam que fosse. Para Maquiavel, o Estado não tem as funções de assegurar a felicidade e a virtude
dos seus súditos, como queria Aristóteles, nem de preparar os homens para o “reino de Deus”, como pregava a Igreja. Partindo da máxima “política é a arte do possível”, Maquiavel considera as coisas como elas estão, e não como deveriam estar. Estabelece uma distinção nítida entre política e moral, pois esta é que se ocupa do que deveria ser.
II - Jean Bodin (1530 – 1596), jurista francês autor de Sobre a República (1576), foi um dos principais teóricos do absolutismo monárquico na Europa. Pensava a soberania do Estado como ilimitada e defendia que o monarca pode interpretar as leis divinas de forma autônoma,
sem a necessidade de contar com o apoio do papa. O que define e constitui o Estado não é o povo nem o território, é o poder, que, por isso, deve ser absoluto. Esse poder ou soberania é, para Bodin, o único fator que unifica indivíduos, famílias e grupos num corpo único e perfeito, cimentando a sociedade, que não pode existir sem seu soberano real.
III - Thomas Hobbes (1588 – 1679) foi o principal teórico do absolutismo. Jusnaturalista* convicto, escreveu o Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Sua teoria é a de que no seu estado de natureza os homens primitivos agem como animais, destruindo-se uns aos outros pela sede de riquezas, propriedades e poder. Homo homini lupus, ou seja, o homem é o lobo do homem. Para sair do estado de barbárie, foi preciso estabelecer um acordo ou pacto social por meio do qual se constituiu o Estado. Cabe a ele refrear a violência generalizada e a mútua destruição. Os homens aceitam que, pelo contrato
a que todos devem aderir, o Estado deve ter o poder absoluto. Para superar o egoísmo e viver
em sociedade, entregam todo o poder ao monarca, que passa, então, a ser o único com direito
ao uso da violência.
* jusnaturalista: aquele que acredita num direito cujo conteúdo é estabelecido pela natureza
IV - John Locke (1632 – 1704) viveu numa Inglaterra que havia se tornado um grande império
mercantilista. Foi o fundador do empirismo filosófico moderno e o teórico da revolução liberal
inglesa, a chamada Revolução Gloriosa de 1688. Em suas obras, com destaque para o Segundo
Tratado sobre o Governo Civil, defende que o homem no estado natural é completamente livre, mas sente a necessidade de limitar essa liberdade a fim de proteger sua propriedade. Enquanto para Hobbes o Estado gerado é absolutista, para Locke o Estado deve garantir certas
liberdades porque, como em qualquer contrato, o feito pode ser desfeito. Além da propriedade, o Estado deve garantir a liberdade de expressão, a possibilidade de reunião em assembleia e, principalmente, a livre iniciativa econômica. A propriedade se transmite por herança, mas o poder político deve ter origem democrática, no parlamento eleito. Aí está a origem da distinção entre sociedade política (Estado) e sociedade civil.
V - Barão de Montesquieu – Charles-Louis de Secondat (1689 – 1755) foi um dos mais importantes filósofos políticos de língua francesa no século XVIII. Publicou Cartas persas, em
1721, e O espírito da leis, em 1748, obras em que expõe um profundo amor pela liberdade política. Admirador do modelo parlamentar inglês, propôs a forma mista de governo como já
se cogitava desde Platão. Sua teoria dos três poderes buscava conciliar os estamentos monárquico (Coroa), aristocrático (nobreza) e democrático (povo). O poder do Estado devia dividir-se em três instâncias autônomas entre si: o poder Executivo, o poder Judiciário e o poder Legislativo. Vem de Mostesquieu a ideia do equilíbrio entre os poderes e o recurso do
veto do poder Executivo à legislação, praticado ainda hoje.
VI - Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) discordava tanto do absolutismo de Hobbes como da concepção liberal de Locke. Foi o primeiro grande filósofo político a defender uma concepção democrático-burguesa. Jusnaturalista, Rousseau enxergava o estado de natureza
do homem como um estado de virtude, felicidade e liberdade que é destruído pela civilização.
Também para ele, o indivíduo funda a sociedade por meio de um contrato social. Mas, para isso, não pode renunciar aos bens essenciais da liberdade e da igualdade. Enquanto para Locke o contrato gera a sociedade e o Estado ao mesmo tempo, para Rousseau o contrato social gera só a sociedade, na qual o povo detém a soberania. Em sua concepção de governo, o único órgão soberano deve ser a Assembleia, que expressa a soberania popular. A afirmação da igualdade é fundamental: o homem só pode ser livre se for igual; surgindo a desigualdade, finda-se a liberdade. O próprio Rousseau denunciou o caráter utópico* de sua proposta quando escreveu “a democracia da qual eu falo não existe, nunca existiu e talvez nunca existirá”.
* utópico: que é fruto da imaginação, da fantasia, de um ideal.
VII - Benjamin Constant de Rebecque (1767 – 1830) foi um teórico liberal que elevou ao máximo a separação entre sociedade civil e Estado. Comparou o homem antigo com o moderno mostrando que, na antiga Atenas ou na Roma republicana, a liberdade política era maior do que hoje, e a liberdade privada (religiosa, econômica, pessoal, etc.) muito menor, pois estava subordinada à autoridade do conjunto, e não havia liberdade de consciência. Hoje temos menos influência sobre o Estado e maior liberdade na vida privada. Constant é radicalmente contra Rousseau por considerar que a igualdade é uma séria ameaça à liberdade.
Para ele, a liberdade identifica-se com a propriedade e a diferença de classes, como se percebe pelo trecho: O que entende hoje como liberdade um francês, um inglês, um habitante dos Estados Unidos da América? Para cada um deles, liberdade é o direito de submeter-se
apenas à lei; de não ser preso, ou mantido na cadeia, ou condenado à morte, nem sofrer maus-tratos de qualquer outro tipo pela vontade arbitrária de um ou mais indivíduos. Para cada um deles é o direito de expressar sua própria opinião, de exercer o seu trabalho, de dispor da sua propriedade e até abusar dela, de ir e vir sem pedir licença, etc.
VIII - Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831), um dos maiores expoentes da filosofia alemã, desenvolveu, em obras como A fenomenologia do espírito, Filosofia do Direito e outras,
uma concepção política claramente oposta à democrática. Distinguia a sociedade civil do Estado, mas entendia o Estado como o verdadeiro fundamento da sociedade civil. Em Hegel, não existe povo se não houver o Estado, pois é este que constrói e integra a sociedade. Para Rousseau o Estado se dissolve na sociedade civil enquanto para Hegel dá-se o contrário. O Estado é personificado pelo monarca, que encarna a soberania. Mesmo a Monarquia Constitucional baseia-se em teses que se aproximam do absolutismo, pois é o monarca que outorga uma Constituição, fixando suas próprias funções e direitos. Deste rápido painel das várias concepções sobre o Estado nacional, a que poderíamos acrescentar outras tantas contribuições, fica a ideia de que se trata mais de justificações ideológicas para a existência
do Estado do que de uma teorização propriamente sólida. Em comum, apresentam a ideia da
dominação de uma minoria sobre a maioria, pois a liberdade não é equivalente para todos, assim como a igualdade mostra-se apenas formal e não concreta para a maioria dos cidadãos. Quando as tropas de Napoleão Bonaparte ocuparam a cidade de Milão empunhando os estandartes tricolores da revolução liberal, o povo destilava sua visão crítica cantando: “Liberté, Égalité, Fraternité, os franceses
de carruagem e nós a pé”.
REVISTA ANGLO – SOCIOLOGIA III
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Teoria para 1ª atividade
UM POUCO DE TEORIA - Jürgen Habermas, «“Estado” e “Nação”»
«Segundo a compreensão moderna, “Estado” é um conceito definido juridicamente: do ponto de vista objectivo, refere-se a um poder estatal soberano, tanto interna quanto externamente; quanto ao espaço, refere-se a uma área claramente delimitada, o território do Estado; e socialmente refere-se ao conjunto dos que o integram, o povo do Estado. O domínio estatal constitui-se nas formas do direito positivo, e o povo de um Estado é portador da ordem jurídica limitada à região de validade do terrirório desse mesmo Estado. No uso político da linguagem, os conceitos "nação" e "povo" têm a mesma extensão. Para além da fixação jurídica, no entanto, "nação" também tem o significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por uma língua, cultura e história em comum. Um povo transforma-se em "nação" nesse sentido histórico apenas sob a forma concreta de uma forma de vida em especial. Os dois componentes, que estão incluídos em conceitos como "Estado nacional" ou "nação de cidadãos de um mesmo Estado", remetem para dois processos que de modo algum decorreram paralelamente na história - da formação de Estados (1), por um lado, e de nações (2), por outro.
(1) Em grande parte, o êxito histórico do Estado nacional pode ser esclarecido em decorrência dos méritos do aparato estatal moderno como tal. É evidente que o Estado territorial com monopólio de poder e administração diferenciada, autónoma e financiada por impostos pode cumprir melhor os imperativos funcionais da modernização social, cultural e sobretudo económica do que as formações políticas de origem mais remota. Neste contexto, basta lembrar as caracterizações de tipos ideais elaboradas por Marx e Max Weber.
(a) O poder executivo do Estado apartado do rei e burocraticamente configurado constituía-se de uma organização de postos especializados segundo áreas do conhecimento, ocupados por funcionários públicos juridicamente treinados e pode apoiar-se sobre o poder enquartelado do exército, polícia e poder carcerário existentes. Para monopolizar esses recursos do uso legítimo do poder, foi preciso impor a "paz nacional". Só é soberano o Estado que pode manter a calma e a ordem no interior e defender efectivamente as suas fronteiras externas. Internamente, tem de se poder impor a outros poderes concorrentes e firmar-se internacionalmente como concorrente em igualdade de direitos. O status de um sujeito no direito internacional baseia-se no reconhecimento internacional como membro "igual" e "independente" no sistema de Estados; e para isso ele precisa de uma posição de poder suficientemente forte. A soberania interna pressupõe a capacidade de imposição da ordem jurídica estatal; a soberania externa, a capacidade de auto-afirmação com vista à concorrência "anárquica" pelo poder entre os Estados.
(b) Ainda mais importante para o processo de modernização é a separação do Estado da "sociedade civil", ou seja, a especificação funcional do aparato estatal. O Estado moderno é a um só tempo Estado directivo e fiscal, o que significa que se restringe essencialmente a tarefas administrativas. Abandona as tarefas produtivas que até então vinham a ser cumpridas no âmbito do domínio político para uma economia de mercado distinta do Estado. Nesse sentido ocupa-se das "condições gerais de produção", ou seja, do arcabouço jurídico e da infra-estrutura necessários ao trânsito capitalista de mercadorias e à organização do trabalho social correspondente. As exigências financeiras do Estado são supridas por uma captação de impostos gerida de forma privada. As vantagens dessa especialização funcional é paga pelo sistema administrativo com a sua dependência da capacidade produtiva de uma economia orientada pelos mercados. Pois embora os mercados possam ser instituídos e supervisionados politicamente, eles seguem uma lógica própria que escapa ao controlo estatal.
A diferenciação entre o Estado e a economia reflecte-se na diferenciação entre o direito público e privado. À medida que o Estado moderno se serve do direito positivo como de um meio de organização da sua dominação, vincula-se a um instrumento que - com os conceitos da lei, do direito subjectivo (que se deduz a partir daí) e da pessoa jurídica (como detentora de direitos) - confere validade a um princípio novo, explicitado por Hobbes: numa ordem do direito positivo eximida da moral (apenas sob um certo sentido, é claro) permite-se aos cidadãos tudo aquilo que não é proibido. Embora o próprio poder estatal já esteja domesticado na sua condição de Estado de direito, e a coroa já esteja "sob a lei", o Estado não pode servir-se do instrumento do direito sem organizar os trâmites na esfera da sociedade civil (distinta dele mesmo), e isso de tal forma que as pessoas em particular possam chegar ao gozo de liberdades subjetivas - distribuídas de forma desigual, num primeiro momento. Com a separação entre os direitos privado e público, o cidadão individual no papel do "súbdito" - tal como ainda se expressou Kant - é quem ganha uma área crucial de autonomia privada [1].
(2) Hoje vivemos todos em sociedades nacionais que devem a sua unidade a uma organização desse tipo. Tais Estados já existiam muito antes de haver "nações" em sentido moderno. Somente a partir das revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar Estado nacional. Antes de me dedicar ao que há de específico nessa vinculação, gostaria de lembrar, sob a forma de uma pequena incursão na história dos conceitos, o aparecimento da formação da consciência moderna que permite interpretar povo como "nação", num sentido diverso do exclusivamente jurídico.
Segundo o uso linguístico clássico dos romanos, "natio", assim como "gens", é um conceito que surge por oposição a "civitas”. As nações são, em primeiro lugar, comunidades de ascendência comum, que se integram geograficamente por vizinhança e assentamento, culturalmente por uma língua, hábitos e tradição em comum, mas que ainda não se encontram reunidas no âmbito de uma forma de organização estatal ou política. Essa raiz mantém-se vigente por toda a parte, durante a Idade Média e o início da Era Moderna, quando "natio" e "língua" se equivalem. Assim, por exemplo, os estudantes das universidades medievais eram subdivididos em "nationes", de acordo com sua origem enquanto conterrâneos. Com o crescimento da mobilidade geográfica, o conceito serviu em geral para as diferenciações internas das ordens de cavalaria, universidades, mosteiros, concílios, ligas comerciais etc. Portanto, a origem nacional, que era atribuída por outros, esteve associada desde o início com a delimitação negativa entre o própno e o estrangeiro [2].
É num outro contexto que a expressão "nação" vem a assumir um significado contrário e de carácter apolítico. Da associação de feudatários do Império Alemão haviam-se desenvolvido estados de classe; eles baseavam-se em contratos em que o rei ou imperador, que dependia de impostos e protecção militar, concedia privilégios à nobreza, à Igreja e às cidades, ou seja, concedia-lhes uma participação limitada no exercício do domínio político. E essas classes dominantes, reunidas em "parlamentos" ou "câmaras", representavam o "país" ou mesmo a "nação" diante da corte. Como "nação", a aristocracia assumia uma existência política que ainda era negada ao povo enquanto conjunto de súbditos. Isso explica o sentido revolucionário de formulações como "King in Parliament” e tanto mais a identificação do "terceiro estado" com a "nação".
A transformação da "nação aristocrática" em "nação popular", que avança a partir de fins do século XVIII, pressupõe uma mudança de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicialmente na burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e ocasionar progressivamente uma mobilização das massas. A consciência nacional popular cristaliza-se em "comunidades imaginárias" (Anderson) engendradas nas diferentes histórias nacionais, as quais se tornaram o cerne da consolidação de uma nova auto-identificação colectiva: "Assim surgiram as nações nas últimas décadas do século XVIII e ao longo do século XIX (...): construídas por um grupo bem delimitado de eruditos, jornalistas e poetas - nações populares na ideia, mas ainda longe de sê-lo na realidade" [3]. Na mesma medida em que essa ideia se difundiu, também ficou claro, no entanto, que o conceito político de nação popular, modificado a partir do conceito de nação aristocrática, havia emprestado do conceito de "nação" como designação de ascendência e procedência (mais antigo e anterior à política) também a força que o movia à formação de estereótipos. A auto-estilização positiva da própria nação transformava-se agora num eficiente mecanismo de defesa contra tudo o que fosse estrangeiro, mecanismo de desvalorização de outras nações e de exclusão de minorias nacionais, étnicas e religiosas - em especial dos judeus. Na Europa, o nacionalismo vinculou-se de forma muito consequente ao anti-semitismo.»
[1] No seu artigo “Über den Gemeinspruch”, Kant distingue claramente “a igualdade (do indivíduo) com cada outro enquanto súbdito” da “liberdade do ser humano” e da “autonomia do cidadão”, Werke (Weischedel), vol., VI, p. 145.
[2] “O modelo de nações entrou na história europeia sob a natureza de conceitos opostos assimétricos”. H. Münkler, “Die Nation als Modell politischer Ordnung”, Staatswissenschaft und Staatspraxis, ano 5, cad. 3 (1994): p. 381.
[3] H. Schulze, Staat und Nation in der Europäischen Geschite, München, 1994, p. 189.
Habermas, J. (2002). Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Oxford: Polity Press, pp. 123-7 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)http://qualia-esob.blogspot.com/2008/03/estado-e-nao.html
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